Por Clarisse Cristal (Balneário de Camboriú, SC)
Não foi o forte olor de cobre,
que nauseou os sentidos olfativos da condessa. A náusea que nascia no estômago
e subia até a cabeça e voltava de novo para o estômago. O que de fato a
nauseou, foi a vaga lembrança de alguém que a chamou pelo título de condessa, o
que simbolizava tudo que ela mais odiava, neste mundo no seu âmago mais
profundo.
Mas um outro sentimento
floresceu na cabeça dela, na verdade um instinto tomou os pensamentos como um
raio que se abala dos céus e parte uma árvore ao meio. O puro instinto de
sobrevivência soou bem alto àquela hora e ela tentou colocar os pensamentos em
ordem: — Onde estou? Simples assim, uma simples pergunta e mais nada! Onde
estava e o que estava fazendo naquele exato momento? Foi quando ela se viu no
espelho. Na verdade, ela sentiu que não era ela que o espelho refletia e sim
uma imagem projetada na distância de um Quasar, um núcleo galáctico bem
distante de tempo e espaço.
Fá Rodrigues Butler tenta
tomar consciência de si mesma e percebeu uma figura de pé e ao lado dela. Uma
mulher oriental que falava sem parar, uma língua estranha, exótica ao extremo.
Foi quando as palavras da mulher começaram a fazer sentido, que o desespero
tomou conta de Fá. Ela olhou bem a oriental, de idade indefinida e trajada como
um vestido floral e leve, rosto levemente maquiado, unhas pintadas de laranja
cremoso e os tamancos geta.
— Então madame a primeira vez
que se pisa em um palco a gente nunca esquece mesmo! É sim, nunca que a gente
esquece a avant-première, madame. E a senhora tem esta grande dádiva, e que
Dionísio e as bacantes a protejam e a acompanhem a madame! — Falou a mulher
oriental de forma tranquila e pausadamente.
Fá notou que era uma
maquiadora, e ela passou em Fá um pincel levemente para lhe realçar as maçãs do
rosto, a oriental procurou um batom apropriado no estojo de maquiagem. Procurou
como se estivesse consultando uma paleta de cores, a profissional da maquiagem
optou por dois tipos. Um para o lábio superior, carmesim intenso e um outro
vermelho cereja, leve e mais inocente para o lábio inferior. A dualidade de uma
mulher fatal, com a docilidade de uma menina mulher, que estava começando a
descobrir a vida. E para finalizar a oriental pegou um lápis e fez uma pinta no
rosto esquerdo da pretensa atriz. A profissional executou seu trabalho com toda
a eficiência e delicadeza de quem sabia o que estava fazendo, sem pressa
alguma.
— Então a prima, Prima Donna,
lhe falta algo? Alguma coisa? Nada? Então quebre a perna! — Disse a maquiadora
efusiva.
Fá Rodrigues Butler não sabia
o que dizer ou fazer, a não ser concordar acenando com um balançar com a
cabeça, para a exótica mulher, de pé ao lado dela. Para Fá, a situação é mais
que estranha, paradoxal ou mesmo insólita. Mas, bem lá no fundo, ela sabia que
uma tempestade estava por vir, uma sombra negra que se formou no horizonte à
frente. Foi quando uma voz ao longe avisou que faltavam dez minutos para
começar o espetáculo que Fá caiu em si. Era uma voz distante e metalizada, como
se fosse uma gravação analógica e não uma pessoa a um microfone ao vivo. Era
uma voz jovem e distante de uma alma velha.
Mas, a atenção da condessa
voltou para a bancada, bem à frente dela, tudo organizado ao máximo do extremo.
Os esmaltes estavam dispostos, como uma palheta de cores, estavam ao lado
esquerdo dela. E tudo mais, de pincéis, pinças, lápis, corretivos, esponjas
para base, protetor para aplicação de cílios, pequenos espelhos e tudo que Fá,
pode perceber estavam dispostos de forma simétrica em sequência de três e
cinco. Estamos organizados perfeitamente, tanto de formas e cores, a mulher
olhou profundamente para as bancadas vazias ao lado e elas estavam em completa
desordem.
— Então a prima Prima Donna,
lhe falta algo? Alguma coisa? Nada? Então quebre a perna! — Repetiu de forma
mecânica a maquiadora oriental. A mulher parecia uma máquina programada,
esperando uma resposta dita.
— Não preciso de mais nada,
obrigada! — Respondeu secamente e sem olhar para a profissional. — Responde Fá
desoladamente.
A maquiadora, então sorriu e
se retirou furtivamente, foi buscar abrigo seguro em uma cadeira a poucos
metros de Fá. Sentou e ficou estática como se fosse um robô desligado. Fá
Rodrigues Butler, tentou processar a situação, mas não houve tempo para
processar nada, pois ela, mecanicamente se levantou, andando até uma porta
envidraçada. Na porta, uma ajudante de ordens esperava sorridente, o homem que
passava da meia idade, pequeno estava vestido como um mordomo inglês do início
do século XlX. Ele sem nada dizer pegou na mão esquerda de Fá e a conduziu por
corredor escuro, que se iluminava conforme os dois andavam. Um leve cheiro
almiscarado chegou aos sentidos de Fá, trazendo uma lembrança distante, em
tempo e no espaço, pois a leve fragrância se misturou a um forte olor de tabaco
mentolado.
As luzes se acendiam conforme
os dois mergulharam na escuridão, ambos estavam em completo silêncio. Fá
trajada como à espanhola, ela vestida como se fosse na alta corte espanhola do
início do século XIX. No íntimo ela bem sabia que estava caminhando para
encarar um batalhão de fuzilamento. Então ao chegar ao fim do corredor, uma
cortina do palco se abriu. Fá viu duas estátuas gregas vivas, eram duas
sentinelas, um musculoso soldado espartano e outro um elegantíssimo pensador
ateniense, ambas trajadas à moda do período da guerra do Peloponeso. Ambos
congelados no tempo e no espaço, retratando uma guerra longínqua também em
tempo e espaço, um prelúdio para a prima Donna. O ajudante de ordem largou a
mão da atriz, e um forte cheiro de algo queimado toma conta do ambiente. Fá
olhou para o ajudante de ordem, e o homem estava com o lado esquerdo do corpo
queimado, exalando fumaça. O homem simplesmente sorriu como um lorde inglês,
com parte do lado esquerdo do rosto desfigurado, a cena gelou a alma da atriz.
O medo e o horror extremado quase a fizeram desmaiar de tanto pavor. O homem
levantou a mão e indicou o caminho do proscênio a pouco à frente dos dois. Fá,
se moveu lentamente para frente, ela querendo esquecer o ajudante de ordem.
Ao chegar no centro do palco,
cortinas foram abertas, com a abertura do palco, as luzes da ribalta cegaram os
olhos da prima Donna momentaneamente. E lá estavam os três adereços de palco.
Fá, notou próxima a ela a esquerda, um dramaturgo sentado em uma antiga escrivaninha.
Um jovem caracterizado, com cabelos grisalhos pintados grosseiramente, com
paletós mal cortado, largas calças bege com a cintura alta, coletes por baixo
dos paletós, sem gravata e nos pés um moderno e barato tênis de corrida. O
homem, usava uma gravata borboleta preta e estava com o cabelo todo arrepiado,
em cima da escrivaninha, uma antiga máquina de escrever Royal da década de
quarenta. O homem estava afogado em velhos papéis amassados, com as mãos na
cabeça, resmungava alto, ele tirou as mãos da cabeça e voltou-se para a prima Donna,
estava com a feição de assustado.
O segundo adereço de cena, que
Fá pode notar estava pouco à frente do dramaturgo, um jovem negro muito alto,
estava com o dorso nu, calça caqui, botas de soldados surradas e segurava uma
guitarra preta em forma de machado. O instrumento era uma simples peça
decorativa, feita especialmente para a encenação, o homem encarava com uma
expressão enfurecida a audiência. O terceiro e último adereço de palco, estava
no lado oposto do proscênio, fazia oposição ao guitarrista, era uma
contrabaixista, também empunhando um instrumento decorativo. Era jovem mulher
loura de meia idade, estava usando um comportado vestido branco, sem maquiagem,
nenhuma joia ou qualquer adereço, ela simplesmente sorria angelicalmente para
audiência em oposição ao outro colega de cena. A ação dramática dos três
elementos era ficar estáticos, pouco se mover, estátuas vivas e mais nada.
Fá olhou para o dramaturgo e
dá os primeiros passos para enfrentar a audiência, ela para por uns instantes e
olhou profundamente para a plateia. Na primeira fila, estavam os militares de
patentes intermediárias com seus uniformes de galas, ladeados de suas esposas
estavam trajes de gala, na segunda fileira estavam os bem-sucedidos homens. Estavam
vestidos de forma elegante, com o seu smoking ladeado por senhoras também
elegantes, com seus vestidos com estolas e casacos de pele. Por fim, nas filas
subsequentes uma plebe malvestida e notadamente não ambientada a frequentar o
teatro. No camarote principal, a prima Donna viu cinco militares de alta
patente, com seus imponentes uniformes de gala. Também notou duas jovens
mulheres usando vestidos medieval de inverno preto elegante e gótico, uma era
negra e outra teuta. Os cinco militares ostentavam seus charutos cubanos e as
mulheres abanavam seus leques de forma teatral.
E lá estava ele, no seu todo,
o público ávido, estavam sedentos a prima Donna pensou, só não sabia o que de
fato queriam. Um homem barbudo chegou por trás de Fá, e sussurrou palavras
inteligentes aos ouvidos atentos da atriz, o homem barbudo, deu meia volta e
desapareceu de cena. Fá Rodrigues Butler, deu uns passos à frente, encerrou a
audiência e tentou iniciar o monólogo, mas as palavras não chegavam, um
burburinho tomou conta da plateia, risos, pigarros, assobios e palavras
ininteligíveis. Foi quando ela angustiada tomando conta de fato o que ocorria
em seguida, em lampejo, uma ideia de uma fuga desesperada tomou-lhe a cabeça,
não uma fuga qualquer mais um grand finale. Foi quando ela levantou a mão
esquerda e empunhou uma pistola Luger P08, o burburinho da plateia cessou por
fim, estavam todos prestando atenção na atriz. O silêncio dramático toma conta
do ambiente, a prima Donna aponta a arma para o dramaturgo, ao lado e poucos metros
dela, ajusta a mira e atira na cabeça. O estampido tomou conta do lugar, a
audiência se levantou, aplaudiu e gritou bravo, bravíssimo em uníssono,
enquanto o corpo do escritor caía da cadeira sem vida.
Os outros dois adereços de
cena, trocam olhares entre si, olha para trás e olham a prima donna ainda
apontando a pistola em direção do dramaturgo, que estava ao chão. Foi a deixa
para ambos, largarem seus instrumentos de forma abrupta e saírem de cena
calmamente, passaram entra a atriz principal e o ator que estava no chão.
Enquanto a prima Donna andou até à beira do palco e aponta a arma contra a
plateia. Mais uma vez o silêncio dramático, o pavor tomou conta do lugar, até a
atriz levar a arma até a cabeça e atirar em si mesma, urros de viva aplausos tomaram
conta do lugar.
Não foi o forte olor de cobre,
que nauseou os sentidos da condessa. A náusea veio de outro lugar, a sensação
nauseante nascia no estômago e subia até a cabeça e voltava de novo para o
estômago. O que de fato a nauseou foi o fato de alguém a chamar de condessa,
que simbolizava tudo que ela mais odiava. Mas um outro sentimento surgiu na
cabeça dela, na verdade um instinto tomou os pensamentos como um raio que
despencou dos céus e parte uma árvore ao meio. O puro instinto de sobrevivência
soou bem alto àquela hora e ela tentou colocar os pensamentos em ordem: — Onde
estou?
(Fragmento do livro: Em dias de
sol e calor, em noite de tempestades e frio, de Clarisse Cristal,
poetisa, contista, novelista e bibliotecária de Balneário Camboriú, Santa
Catarina)
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