sexta-feira, 1 de setembro de 2023

PRAE DOLORE, DIANTE DA DOR

Por Clarisse Cristal (Balneário de Camboriú, SC) 

 

Não foi o forte olor de cobre, que nauseou os sentidos olfativos da condessa. A náusea que nascia no estômago e subia até a cabeça e voltava de novo para o estômago. O que de fato a nauseou, foi a vaga lembrança de alguém que a chamou pelo título de condessa, o que simbolizava tudo que ela mais odiava, neste mundo no seu âmago mais profundo.

Mas um outro sentimento floresceu na cabeça dela, na verdade um instinto tomou os pensamentos como um raio que se abala dos céus e parte uma árvore ao meio. O puro instinto de sobrevivência soou bem alto àquela hora e ela tentou colocar os pensamentos em ordem: — Onde estou? Simples assim, uma simples pergunta e mais nada! Onde estava e o que estava fazendo naquele exato momento? Foi quando ela se viu no espelho. Na verdade, ela sentiu que não era ela que o espelho refletia e sim uma imagem projetada na distância de um Quasar, um núcleo galáctico bem distante de tempo e espaço.

Fá Rodrigues Butler tenta tomar consciência de si mesma e percebeu uma figura de pé e ao lado dela. Uma mulher oriental que falava sem parar, uma língua estranha, exótica ao extremo. Foi quando as palavras da mulher começaram a fazer sentido, que o desespero tomou conta de Fá. Ela olhou bem a oriental, de idade indefinida e trajada como um vestido floral e leve, rosto levemente maquiado, unhas pintadas de laranja cremoso e os tamancos geta.

— Então madame a primeira vez que se pisa em um palco a gente nunca esquece mesmo! É sim, nunca que a gente esquece a avant-première, madame. E a senhora tem esta grande dádiva, e que Dionísio e as bacantes a protejam e a acompanhem a madame! — Falou a mulher oriental de forma tranquila e pausadamente.

Fá notou que era uma maquiadora, e ela passou em Fá um pincel levemente para lhe realçar as maçãs do rosto, a oriental procurou um batom apropriado no estojo de maquiagem. Procurou como se estivesse consultando uma paleta de cores, a profissional da maquiagem optou por dois tipos. Um para o lábio superior, carmesim intenso e um outro vermelho cereja, leve e mais inocente para o lábio inferior. A dualidade de uma mulher fatal, com a docilidade de uma menina mulher, que estava começando a descobrir a vida. E para finalizar a oriental pegou um lápis e fez uma pinta no rosto esquerdo da pretensa atriz. A profissional executou seu trabalho com toda a eficiência e delicadeza de quem sabia o que estava fazendo, sem pressa alguma.

— Então a prima, Prima Donna, lhe falta algo? Alguma coisa? Nada? Então quebre a perna! — Disse a maquiadora efusiva.

Fá Rodrigues Butler não sabia o que dizer ou fazer, a não ser concordar acenando com um balançar com a cabeça, para a exótica mulher, de pé ao lado dela. Para Fá, a situação é mais que estranha, paradoxal ou mesmo insólita. Mas, bem lá no fundo, ela sabia que uma tempestade estava por vir, uma sombra negra que se formou no horizonte à frente. Foi quando uma voz ao longe avisou que faltavam dez minutos para começar o espetáculo que Fá caiu em si. Era uma voz distante e metalizada, como se fosse uma gravação analógica e não uma pessoa a um microfone ao vivo. Era uma voz jovem e distante de uma alma velha.

Mas, a atenção da condessa voltou para a bancada, bem à frente dela, tudo organizado ao máximo do extremo. Os esmaltes estavam dispostos, como uma palheta de cores, estavam ao lado esquerdo dela. E tudo mais, de pincéis, pinças, lápis, corretivos, esponjas para base, protetor para aplicação de cílios, pequenos espelhos e tudo que Fá, pode perceber estavam dispostos de forma simétrica em sequência de três e cinco. Estamos organizados perfeitamente, tanto de formas e cores, a mulher olhou profundamente para as bancadas vazias ao lado e elas estavam em completa desordem.

— Então a prima Prima Donna, lhe falta algo? Alguma coisa? Nada? Então quebre a perna! — Repetiu de forma mecânica a maquiadora oriental. A mulher parecia uma máquina programada, esperando uma resposta dita.

— Não preciso de mais nada, obrigada! — Respondeu secamente e sem olhar para a profissional. — Responde Fá desoladamente.

A maquiadora, então sorriu e se retirou furtivamente, foi buscar abrigo seguro em uma cadeira a poucos metros de Fá. Sentou e ficou estática como se fosse um robô desligado. Fá Rodrigues Butler, tentou processar a situação, mas não houve tempo para processar nada, pois ela, mecanicamente se levantou, andando até uma porta envidraçada. Na porta, uma ajudante de ordens esperava sorridente, o homem que passava da meia idade, pequeno estava vestido como um mordomo inglês do início do século XlX. Ele sem nada dizer pegou na mão esquerda de Fá e a conduziu por corredor escuro, que se iluminava conforme os dois andavam. Um leve cheiro almiscarado chegou aos sentidos de Fá, trazendo uma lembrança distante, em tempo e no espaço, pois a leve fragrância se misturou a um forte olor de tabaco mentolado.

As luzes se acendiam conforme os dois mergulharam na escuridão, ambos estavam em completo silêncio. Fá trajada como à espanhola, ela vestida como se fosse na alta corte espanhola do início do século XIX. No íntimo ela bem sabia que estava caminhando para encarar um batalhão de fuzilamento. Então ao chegar ao fim do corredor, uma cortina do palco se abriu. Fá viu duas estátuas gregas vivas, eram duas sentinelas, um musculoso soldado espartano e outro um elegantíssimo pensador ateniense, ambas trajadas à moda do período da guerra do Peloponeso. Ambos congelados no tempo e no espaço, retratando uma guerra longínqua também em tempo e espaço, um prelúdio para a prima Donna. O ajudante de ordem largou a mão da atriz, e um forte cheiro de algo queimado toma conta do ambiente. Fá olhou para o ajudante de ordem, e o homem estava com o lado esquerdo do corpo queimado, exalando fumaça. O homem simplesmente sorriu como um lorde inglês, com parte do lado esquerdo do rosto desfigurado, a cena gelou a alma da atriz. O medo e o horror extremado quase a fizeram desmaiar de tanto pavor. O homem levantou a mão e indicou o caminho do proscênio a pouco à frente dos dois. Fá, se moveu lentamente para frente, ela querendo esquecer o ajudante de ordem.

Ao chegar no centro do palco, cortinas foram abertas, com a abertura do palco, as luzes da ribalta cegaram os olhos da prima Donna momentaneamente. E lá estavam os três adereços de palco. Fá, notou próxima a ela a esquerda, um dramaturgo sentado em uma antiga escrivaninha. Um jovem caracterizado, com cabelos grisalhos pintados grosseiramente, com paletós mal cortado, largas calças bege com a cintura alta, coletes por baixo dos paletós, sem gravata e nos pés um moderno e barato tênis de corrida. O homem, usava uma gravata borboleta preta e estava com o cabelo todo arrepiado, em cima da escrivaninha, uma antiga máquina de escrever Royal da década de quarenta. O homem estava afogado em velhos papéis amassados, com as mãos na cabeça, resmungava alto, ele tirou as mãos da cabeça e voltou-se para a prima Donna, estava com a feição de assustado.

O segundo adereço de cena, que Fá pode notar estava pouco à frente do dramaturgo, um jovem negro muito alto, estava com o dorso nu, calça caqui, botas de soldados surradas e segurava uma guitarra preta em forma de machado. O instrumento era uma simples peça decorativa, feita especialmente para a encenação, o homem encarava com uma expressão enfurecida a audiência. O terceiro e último adereço de palco, estava no lado oposto do proscênio, fazia oposição ao guitarrista, era uma contrabaixista, também empunhando um instrumento decorativo. Era jovem mulher loura de meia idade, estava usando um comportado vestido branco, sem maquiagem, nenhuma joia ou qualquer adereço, ela simplesmente sorria angelicalmente para audiência em oposição ao outro colega de cena. A ação dramática dos três elementos era ficar estáticos, pouco se mover, estátuas vivas e mais nada.

Fá olhou para o dramaturgo e dá os primeiros passos para enfrentar a audiência, ela para por uns instantes e olhou profundamente para a plateia. Na primeira fila, estavam os militares de patentes intermediárias com seus uniformes de galas, ladeados de suas esposas estavam trajes de gala, na segunda fileira estavam os bem-sucedidos homens. Estavam vestidos de forma elegante, com o seu smoking ladeado por senhoras também elegantes, com seus vestidos com estolas e casacos de pele. Por fim, nas filas subsequentes uma plebe malvestida e notadamente não ambientada a frequentar o teatro. No camarote principal, a prima Donna viu cinco militares de alta patente, com seus imponentes uniformes de gala. Também notou duas jovens mulheres usando vestidos medieval de inverno preto elegante e gótico, uma era negra e outra teuta. Os cinco militares ostentavam seus charutos cubanos e as mulheres abanavam seus leques de forma teatral.

E lá estava ele, no seu todo, o público ávido, estavam sedentos a prima Donna pensou, só não sabia o que de fato queriam. Um homem barbudo chegou por trás de Fá, e sussurrou palavras inteligentes aos ouvidos atentos da atriz, o homem barbudo, deu meia volta e desapareceu de cena. Fá Rodrigues Butler, deu uns passos à frente, encerrou a audiência e tentou iniciar o monólogo, mas as palavras não chegavam, um burburinho tomou conta da plateia, risos, pigarros, assobios e palavras ininteligíveis. Foi quando ela angustiada tomando conta de fato o que ocorria em seguida, em lampejo, uma ideia de uma fuga desesperada tomou-lhe a cabeça, não uma fuga qualquer mais um grand finale. Foi quando ela levantou a mão esquerda e empunhou uma pistola Luger P08, o burburinho da plateia cessou por fim, estavam todos prestando atenção na atriz. O silêncio dramático toma conta do ambiente, a prima Donna aponta a arma para o dramaturgo, ao lado e poucos metros dela, ajusta a mira e atira na cabeça. O estampido tomou conta do lugar, a audiência se levantou, aplaudiu e gritou bravo, bravíssimo em uníssono, enquanto o corpo do escritor caía da cadeira sem vida.

Os outros dois adereços de cena, trocam olhares entre si, olha para trás e olham a prima donna ainda apontando a pistola em direção do dramaturgo, que estava ao chão. Foi a deixa para ambos, largarem seus instrumentos de forma abrupta e saírem de cena calmamente, passaram entra a atriz principal e o ator que estava no chão. Enquanto a prima Donna andou até à beira do palco e aponta a arma contra a plateia. Mais uma vez o silêncio dramático, o pavor tomou conta do lugar, até a atriz levar a arma até a cabeça e atirar em si mesma, urros de viva aplausos tomaram conta do lugar.

Não foi o forte olor de cobre, que nauseou os sentidos da condessa. A náusea veio de outro lugar, a sensação nauseante nascia no estômago e subia até a cabeça e voltava de novo para o estômago. O que de fato a nauseou foi o fato de alguém a chamar de condessa, que simbolizava tudo que ela mais odiava. Mas um outro sentimento surgiu na cabeça dela, na verdade um instinto tomou os pensamentos como um raio que despencou dos céus e parte uma árvore ao meio. O puro instinto de sobrevivência soou bem alto àquela hora e ela tentou colocar os pensamentos em ordem: — Onde estou?


(Fragmento do livro: Em dias de sol e calor, em noite de tempestades e frio, de Clarisse Cristal, poetisa, contista, novelista e bibliotecária de Balneário Camboriú, Santa Catarina)


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