A cidade que
conservo na memória, não é a de hoje. A minha há muito morreu, mergulhada no
passado. Perdida num tempo que já não é.
O Sol que agora
bronzeia, patina, doira vetustas ruas, a cidadela, as velhas pedras seculares,
é o mesmo; mas as figuras que animaram o antigo e senhorial burgo, há muito
desapareceram num passado que passou.
Todavia vivem, ainda
dentro de mim…Renascem em devaneios, em nostálgicos sonos, e persistem
aconchegarem-se na alma saudosa.
Lembro-me – melhor
se fecho os olhos, – a velha ronceira e embaladora automotora encarnada.
Passeava preguiçosa pelos estreitos trilhos, rompendo por cerros fragosos e
quase nus. O Tua, lá em baixo, de águas cristalinas, debatia-se exasperado,
bracejando, entalado por alcantiladas e escarpadas ravinas de terra ocre, que
pareciam despenhar-se à mais leve viração.
Vejo nitidamente a
simpática estação ferroviária, toda branca, que acolhia os passageiros, ainda
tontos e enjoados pelo baloiçar a que eram forçados.
Vejo, também, a
antiquíssima Praça da Sé e o pelourinho, toda lajeada a granito, envelhecido
pelos anos e pelo musgo. O casarão branco do Montepio; a pequena e animada
livraria do Sr. Silva – sempre cumprimentador, sempre respeitoso: o Café
Central, onde em calmas tardes, bebia o Martini, e nas frigidíssimas noites de
Inverno, quando o vento soprava da Sanabria, e a fofa e alva neve tudo cobria,
saboreava o cafezinho e o inseparável bagaço. Bagaço que só os transmontanos
sabiam fabricar.
Chego, agora, ao
aristocrático Chave D’Ouro, onde “importantes” cavaqueavam freneticamente, e
eu, na flor da idade, estudava inglês e lia e relia Camilo. Livros que obtinha
na carrinha da Biblioteca Itinerante, que estacionava, em determinado dia,
sobre as sólidas e largas lajes, junto à Sé.
Bragança
Recordo com emoção o
pequeno e familiar Café Lisboa. Sentado, junto ao balcão, escutando os
entusiásticos comentários do Sr. Manuel, assisti, em directo, à façanha
extraordinária da chegada do homem à Lua.
Lembro-me, ainda –
como me lembro!, – ter presenciado a inauguração do Flórida. - Café que passou
a ser frequentado pela rapaziada elegante da cidade.
Viajando ao sabor da
memória pelas ruas empedradas da cidade, que já não existe, chego à “moderna”
Avenida do Sabor.
Nela ficava a casa
do Dr. Flores – sempre sisudo, de cara cerrada e de coração generoso, – e a do
Dr. Pires, mais a numerosa prole…
Nessa avenida
conheci graciosa moreninha, de pele macia e doirada. Cabelo castanho que
coruscava ao sol, apanhado em farto rabo-de-cavalo. O olhar irradiava
ingenuidade e extrema candura.
Há crianças que não
devem crescer. São bênçãos. Anjos que amenizam vicissitudes. Essa era uma
delas. Conservo na retina o encantador sorriso e o rostinho angelical.
Dos passeios que
dava – e não foram poucos, – não posso esquecer a trilha pitoresca que ladeava
o manso Fervença – rio que desce pachorrentamente, no forte do Verão, entre
agrestes e escabrosos cerros.
Pelourinho e Castelo
de Bragança
Entranhava por
vielas e becos da cidadela, e meditando e rezando, alheado de tudo e de todos,
sempre trilhando estreitos carreiros, chegava ao Café Floresta; com o rio, de
águas translúcidas, aos pés, e o céu azul profundo, como teto. E sempre o
murmúrio das águas… e o murmúrio surdo do silêncio…
Ai que saudade tenho
das quentes noites de Estio! Logo que empalidecia o céu, em tons de fogo, e o
Sol incendiava-se no horizonte, caminhávamos em grupo para o Jardim António
Nicolau d’Almeida, que ficava junto ao rio. Ouvia-se música quase toda
romântica. Roberto Carlos era o rei. Pares de namorados, enlevados, passeavam
de mãos enlaçadas, cochichando doces palavras de amor…
Perdição para moças
casadoiras eram os milicianos do BC3. Chegavam a visitá-los – os de maior
patente, – no quartel.
O Batalhão
resumia-se a duas ou três casernas mal-amanhadas, cercadas de improvisada
vedação. Não havia portas. Não fossem sentinelas, circulava-se livremente.
À hora de almoço, a
carrinha vinha receber oficiais e sargentos à Praça da Sé, para os levar até ao
morro do quartel.
Agora, no crepúsculo
da vida, em horas de nostalgia, escutando o murmúrio longínquo da velha Parca,
uma onda de saudade invade-me a alma…e magoa, e fere, e dói…
E a voz que brota
dentro do peito, pergunta-me: - Onde estão os que se acotovelavam e
pontapeavam-se na raivosa ânsia de alcançar o topo do sucesso?
E a mesma voz
sussurra-me: - Repousam o eterno sono… Viveram… mas foi como não vivessem...
Lutaram… mas é como não tivessem lutado… A morte igualou – vencidos aos
vencedores. Reduziu-os a cinza…a nada.
Tudo morre. Tudo
desaparece. Tudo é esquecido…. Tudo se transforma em pó…em poalha de nada.
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