Por
Humberto Pinho da Silva (Vila Nova de Gaia, Portugal)
Recostada
na cadeira de trabalho, em contraluz, diante da camila, revestida de toalhinha
cor de canela, que tapa a braseira de cobre – onde em frias tardes de Inverno,
ardem brasas rubras, – a zelosa mãe, de agulha na mão, acerta os calções
vermelhos, da filha amada.
Pelas
extensas vidraças, viradas para a cidadela, penetra leve claridade, envolvendo
tudo numa doce e deliciosa paz.
Luz
desmaiada de fim de tarde de Verão. Lá fora, o céu azul, acarminas- se,
esmorecendo lentamente, em violeta – sanguínea e luminosa poalha doirada.
Silêncio.
A
pequena salinha adormece em doce penumbra. Tudo se desvanece num misterioso
encantamento: o aparelho de TV; o armário, pintado de branco, arrimado ao
fundo; a toalhinha cor de canela, a mãe; os calções encarnados…Tudo se
esvanece, esfuma-se, perdido na luz acolhedora, de entardecer calmoso.
Vem
da cozinha, intensamente iluminada, tilintar de vidros e metais; e paira no ar,
adocicado e delicioso odor a chocolate. É a filha mais velha que tem o bolo no
forno.
De
súbito o repousante silêncio – convidativo à sonolência, – é rasgado por
harmoniosa voz juvenil:
-“
Mãe!!! … Como se faz chantilly?”
Um
sorriso de bondade aflora nos lábios finos da progenitora.
Depõe
os calções encarnados, mais a agulha, sobre a mesa, e lançando meigo olhar para
a filha – que de mangas arregaçadas, no limiar da porta, aguarda a esperada
resposta, – diz:
-
“Mistura manteiga com açúcar e bate muito bem…muito bem…muito bem…Depois…”
Afobada,
de braços balanceando, boca a transbordar sorrisos chilreantes, olhos vivos,
espertos, luzindo de felicidade, entra a caçulinha, em grande estardalhaço.
Beija
de fugida a mãe; abraça-a afectuosamente, como querendo dizer: - “ Gosto muito
de ti! …”
Espicaçada
pela curiosidade, aos saltinhos, quase pardalita travessa, a menininha
interroga, ansiosamente a mana querida:
-
“O que estás a fazer?!”
Ninguém
lhe responde….
Amuada,
despeitada, triste, de olhos fixos no vácuo, fica pensativa, a folhear velho
caderno escolar, de capa azul, de folhas enodoadas, por muito ter sido
manuseado.
Pela
escancarada porta de vidro da varanda, entra, trazido pela brisa morna, à
mistura com ruídos da rua: guinchos infantis e risos festivos de crianças. São
os filhos do doutor ou do Major?
Ao
longe, muito ao longe, galos de voz esganiçada, anunciam que são horas de
recolher….
A
salinha, agora, é quase trevas. Na semi-escuridão reluzem, na carinha morena,
os luminosos olhos castanhos da meiga garotinha, que permanecem parados,
tristes e meditativos.
Por
arte mágica, de repente, tudo ganha brilhos e rebrilhos e nítidos contornos.
Foi a mãe, que vindo da cozinha, acendeu as lâmpadas.
-“
Vamos provar?” – Diz, como se a convidasse.
Nesse
comenos, toca a campainha. Quem será?!
É
a D. Flora, professora, amiga da dona de casa.
Dá
repenicados beijinhos à menina e à mãe, e atira, com quatro dedos rechonchudos,
beijos à que anda à volta com o bolo, que rescende.
Conta
novidades: casamento da Néné; maroteiras do filho do Dr. Bento; a lotaria
premiada, vendida na Praça da Sé…
-
“Vem menina! …Vem provar!” – Insiste, mais uma vez, a mãe, explicando, à
visita, que vão a banhos para Foz de Arelho.
Encolhida,
envergonhada, enleada, de faces rosadas, avizinha-se; e esta sem reparar no
rosto anacarado de acanhamento, levanta-lhe a vaporosa saia, deixando as
calcinhas cor-de-rosa, à vista e a perna nua.
Constrangida,
humilhada, por se ver descomposta diante de estranhos, a pequenita fica a
balancear: a brincar com os dedos das mãos…Com os dedos dos pés…Acariciando os
macios cabelos castanhos de reflexos doirados; mas as maçãzinhas do rosto,
enrubescem-se de pejo.
A
mãe é mãe. Não é “gente”. Despir-se diante dela, é normal…mas na frente de
visitas…
Indiferente
ao comportamento da filha, nem repara no acanhamento, e continua a conversar –
num cavaquear de amigas.
Este
quadro familiar, tão simples, tão singelo, tão sem importância, não seria
merecedor de registro, senão fosse o embaraço da mocinha.
Os
pais, por vezes, esquecem-se que os filhos cresceram…Deixaram de ser
garotinhos.
Há
mães que pedem a empregadas para darem banho aos filhos, e vestem-nos diante de
amigas. Olvidando que o pudor das crianças deve ser respeitado.
A cena que vos trago, ocorreu há muito e
muitos anos, quando os meninos e meninas eram recatados.
Agora,
o pudor, parece estar a desaparecer…
O
“progresso” deve-se, em parte, ao: ensino misto, à liberdade paterna e mormente
à nefasta influência do cinema e TV.
Essa
á vontade, por si, não é má nem boa. Mau é quando descamba em libertinagem e
desrespeito pelo corpo.
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