domingo, 1 de maio de 2016

A INGRATIDÃO DA ESPOSTOA

Por Humberto Pinho da Silva (Vila Nova de Gaia, Portugal)

Quando era menininho, ia na companhia de minha mãe, para aldeia perdida entre serranias. Ficava em quebrada de serra, que a protegia de ventos frios, e desabridos temporais, que fustigavam desapiedadamente as povoações vizinhas.
Quase todos os verãos abalávamos para Trás-os-Montes, em velhíssimo comboio de amplos bancos de madeira envernizada, que serpenteava as mansas águas do rio Douro.
Nessa recuada época, as águas do rio eram cristalinas e plácidas, e caminhavam tranquilas para a foz. Numa quietude quase absoluta: sem pressa, sem correrias, sem atropelos…
Numa dessas viagens comboianas (como gostava de cactos, e ainda gosto,) levei envasado, um, que comprara na florista da minha rua; e criara-o com esmero e amor, no peitoril da janela de meu quarto
Meu pai aconselhou-me a levá-lo. Segundo ele, a planta estiolaria e talvez morresse, no pequeníssimo vaso de barro vermelho, onde nascera.
De tanto o ver e cuidar, afeiçoei-me. Falava com ele; acariciava-o com os meus deditos; penteava-o com doçura a branca penugem sedosa; e convenci-me, que ele, de tanto me ver, de tanto o ter abraçado, também nutria por mim, sentimentos de grande ternura.
Replantei-o com carinho, em terra fofa e bem adubada. Todos os dias, logo que o Sol se levantava, visitava-o, dando-lhe os bons-dias; e, pelo anoitecer, quando a tarde calmosa, adormecia, ia vê-lo. Passava, então, largos minutos a cuidá-lo: libertando-o de indesejáveis bichinhos.
Foi em lágrimas que me despedi. Creio que o beijei; e convenci-me que ele, também chorou: pois cobriu-se de gotinhas de orvalho, na manhã da partida.
Quando, no aconchego do meu pequenino quarto, entre alvos lençóis, ouvia a chuva e o vento vergastarem as vidraças, da minha janela; e via, pelas frinchas das portadas de madeira, o clarão azul de raios, que rasgavam a noite negra, rezava, muito baixinho, para que o bom Deus o guardasse, com Sua Mão ou Seus anjos, das intempéries impiedosas.
Para me cativar, meu tio, fez-lhe uma estufa, com sólido telhadinho de colmo, que o defendia de agrestes invernadas.
No ano seguinte, parti ansioso. Não via hora de chegar: para o abraçar e quiçá, beijá-lo.
Para meu espanto, tinha crescido. Estava quase do meu tamanho! … Era, não digo, um cacto adulto, mas adolescente…
Aproximei-me para o abraçar, e logo recuei, com as mãos crivadas de pequeninos e agressivos espinhos.
Ralhei asperamente com ele. Eu, que o cuidara com tanta dedicação; que o amei tanto, fui recebido como estranho, como se fosse malfeitor! …
Olhei-o de frente – e, enquanto retirava, um a um, os espetos que se enterraram na epiderme, pensava com pesar.:
Quando era menina, a minha espostoa, recebia os meus carinhos, com alegria; e retribuía-os, acariciando-me, com os sedosos pelos, a minha mão acalentadora.
Crescera, tornara-se adulta, e considerou que não mais precisava de mim, e recebeu-me com indiferença; com a superioridade de quem tem esteiros sólidos, e não precisa mais de ajuda…
Lembrei-me de narrar a história da espostoa, porque, amiga minha, minhota de coração, e alentejana por casamento, em hora de amargura, contou-me: que casara ainda menina com industrial. E tão menina era, que não poucas vezes, o marido, surpreendeu-a a dançar o Vira, no quarto…Então, corava de vergonha…
Gostava muito de crianças, mas nunca foi abençoada. Dedicou-se de alma e coração ao filho do caseiro da quinta, onde morava.
Queria-lhe tanto, que se alegrava com suas alegrias e chorava quando ele chorava, pelo amor que lhe tinha. Resolveu, então, deixar-lhe a casa, onde vivia, por muito lhe querer.
O menino cresceu. Esqueceu os mimos que receberas; e, indiferente à velhinha entorpecida, que muito lhe queria, abandonou-a na companhia de rude criada, que mal falava o português! …
Minha amiga chorou muito, em segredo. Porque sentimentos e afectos sofrem-se em silêncio, para que o mundo não se ria de quem ainda os tem.
O mesmo acontecera comigo: a espostoa criou espinhos para se defender de inimigos; mas não soube recolhê-los, quando eu, cheio de ternura, e olhos radiantes de amor, a abracei.

Tinha crescido…já não precisava dos meus carinhos…

Nenhum comentário:

Postar um comentário