Dizem que à hora da morte, o
filme da vida, desenrola-se: cenas, episódios, posturas, ocorridas ao longo da
jornada, voam a velocidade estonteante.
Acredito que assim seja.
Com o avançar da idade, ao envelhecer, velhas
recordações, esquecidas no armário da memória, imergem, com pormenores tão
nítidos, que parecem contemporâneos.
O que vou contar, saltou da gaveta, das muitas
que o subconsciente guarda.
Acordara a cidade nessa longínqua manhã de
Inverno, coberta de fino manto de neve. Estava frio de rachar. O cinzento
pálido do céu, parecia crivo, peneirando neve, como se fosse alva farinha.
No final da tarde estava na praça principal da
cidade. Nem viva alma… Três entroncados homens, envoltos em quentes samarras, enfrentavam
a nevada, arrastando os pés, enfiados em rijas botas de cano alto.
À porta da igreja, mulher trajada de negro,
com o rosto quase sumido por lenço preto, espreitava, de esgueira, o cair da
neve.
Conversavam, animadamente, à porta de
livraria, dois sujeitos de meia-idade, esfregando freneticamente as mãos
enregeladas:
- A neve é perigosa… para quem anda no campo!
O outro concordava, sacudindo a cabeça,
batendo com força os pés, na soleira da porta:
- Conheço quem ficasse marcado, devido a
queda. A neve é bonita… mas traiçoeira!
Endireitei, a passos miúdos, para a “Casa da
Ribeira”. Para não escorregar, cosi-me, o mais que pude, às paredes.
A neve caía em rolão. Varrido de mansinho pelo
vento frigidíssimo, que soprava da serra, flutuavam leves flocos de neve,
verdadeiros farrapinhos de fofo algodão.
Levemente, bati à porta.
Silêncio absoluto.
A rua era toda branca. Crianças brincavam,
pulavam e corriam, soltando alegres gargalhadas, lançando bolinhas de neve
amassada. Por descuido, uma atingiu homem baixo e gordo, que subia a rua. O
bando, como passarinhos assustados, dispersou.
Dos quintais, cobertos de neve, cachorros,
transidos de frio, choravam lugubremente, num pranto canino.
Torno a bater.
De longe, chega o som estridente de um galo,
rasgando o ar com seu imponente: cocorocó.
Aconchego, ainda mais ao pescoço, o largo
cachecol de lã.
Na janela iluminada, da casa contígua,
garotinho, de nariz esmagado na embaciada vidraça e olhos esbugalhados de espanto,
mirava o cair da neve
Abre-se a porta.
De mansinho, galgo o pequeno lance de escadas.
Silêncio. Nem um ruído. Terão saído?
Nesse instante, vem da salinha, voz doce,
arrastada, suave como murmúrio:
- “ Entre…Entre… venha p’ra aqui. A braseira
está acesa…
A passos leves, caminho, encolhido.
A saleta estava mergulhada em sombra.acolhedora
Beijo, respeitosamente, a dona de casa:
senhora jovem, de beleza cativante.
Timidamente, acerco-me da lareira, colocando
as pesadas botas na borda do suporte que sustinha a braseira, onde três
tronquinhos incandescentes, refulgiam.
À volta, tudo permanecia nos mesmos lugares:
Ao fundo o armário. À esquerda, o aparelho de TV. Arrimada à janela, que dava
para o quintal, a mesinha redonda, coberta pela camilha verde, que caía até aos
pés. Sobre ela, a toalhinha beije
Na cozinha, além da porta entreaberta, tudo
era negro…
- Janta connosco.
Agradeço, recusando:
- Aguardam-me para jantar… - Esclareço,
exaltando de alegria.
- Telefone a dizer que janta aqui. - Insiste.
Acedi. Era o que desejava: estar na companhia
amiga, das únicas amigas que tinha.
Em breve, para minha alegria, chegam as
meninas. Traziam sorrisos nos lábios e alegria nos olhos. Estavam a estudar.
Com elas vinha rapazinho, de pele clara, face
risonha, tão amoroso, que ganhara há muito a minha afeição.
Colocados, com cuidado, os pratos de porcelana
e os talheres, na mesinha, foram abertas as lâmpadas elétricas. A louça e os talheres
faiscaram intensamente. A salinha saíra da penumbra.
Durante o repasto, acicatado pela curiosidade,
levantei a vista. Que agradável surpresa! Com a sagacidade própria da
adolescência, uma das mocinhas, a Flavinha, dissimuladamente, observava-me com
fixidez… e leves sorrisos de pejo bailavam nos lábios delicados.
Encheu-se a alma de jubilosa alegria; e onda
de felicidade afogueou-me o rosto, rosando-me a face.
Era noite. Caía neve… Vento frio percorria as
ruas da cidade… mas no âmago do coração, vivas chamas de esperança,
esquentavam-me a alma.
Minhas
fantasias de adolescente eram inocentes bolinhas irisantes de sabão: subiam,
brilhavam, resplandeciam, quebravam-se, e sumiam-se como as ondas nas areias da
praia.
Dos velhos sonhos, que se esfumaram no
deslizar dos anos, ficaram apenas, para minha dor: tristezas, desilusões, desencantos…e
saudades do tempo perdido, que já não é.
Nenhum comentário:
Postar um comentário