Meu nome é João de Oliveira
Prado. Tenho oitenta anos feitos em meados deste mês de Agosto, e acabo de
chegar à cidade onde passei grande parte da minha triste adolescência.
Há muito que não visitava o
antigo burgo serrano, onde cada rua, cada casa, cada pedra, foi impregnada de
velhas e poéticas lendas, páginas vivas da nossa História.
Aqui, nesta região montanhosa,
onde vistosas flores silvestres ombreiam com o verde-prata de seculares oliveiras,
e a vista se deslumbra na vastidão dos montes, que correm em sucessivas cadeias
de cerros, para amplos e verdes vales, revestidos de vastas vinhas e viçosas
messes, fui feliz, apesar de tormentosas e aflitivas contrariedades.
Nesta cidade, perdida em
altaneiras serras, longe de grandes centros, o povo, em calmas tardes de Estio,
quando o calor aperta, descansa a sesta; e fica, nas frigidíssimas noites de
Inverno, se o manto de neve agasalha a natureza, ao redor do calor aconchegante
da lareira, recontando histórias de vidas, que foram, mas já não são.
Estonteado pela aventura,
parti. Comigo levei bom punhado de projetos, que há muito sonhara, e risonhas
fantasias, que jamais consegui realizar.
Agora, sentindo séria
enfermidade corroer desapiedadamente o envelhecido corpo, estranha e entranhada
saudade reviveu dentro de meu peito: o desejo de recordar o tempo que passou.
Tempos de outrora, em que
tenros e frágeis bracitos, de graciosa menininha, trigueira e fagueira,
envolvia-me de carinhosos beijos de infinito amor.
Lembro-me – como me lembro!
Deus meu! - dos soberbos olhos castanhos, cor de avelã, luminosos, vivos,
irrequietos, cheios de ingenuidade e ternura, que enfeitiçaram a alma e
refortalecerem a coragem…… ..Eu, que sempre temi desafios…Não aceitava – e
ainda não aceito, – que se passe a vida a pontapear os menos dotados. Jesus, ao
asseverar: Ama o semelhante, queria dizer – Cuidai uns dos outros, porque sois
filhos do mesmo Pai.
A pequerruchinha, na
encantadora doçura dos inocentes dez anos, magnetizou-me a alma e o coração,
que ainda não acordara …
Era jovem, inexperiente,
desconhecedor dos secretos e maldosos segredos da vida.
Procurei, labutando em terra
estranha, o futuro, mas somente deparei presente de lágrimas, onde ilusões e
fantasias, se afundaram num mar de contrariedades.
Como emigrante, que esgravata
riqueza em terra alheia, esperava regressar com fartos bens, que permitissem
desafogo e inveja aos desafortunados….mas rapidamente dei pelo engano.
Mansamente, deslizaram os anos
- como água de riachinho descuidado, que preguiçoso, pula de pedra em pedra, de
seixo em seixo, - com eles morreram doces sonhos e desejos, urdidos com carinho
e amor, desde a mocidade.
Restou-me a saudade. Saudade do
tempo de menino… – Derradeiro sentimento a morrer…
- Um dia – pensava alvoraçado. -
Um dia, cheio de sol, de fresca Primavera, hei-de confessar-lhe, no mesmo
varandim onde repousava e brincava, que jamais esqueci a ternura do olhar e a
doçura dos carinhosos beijos….
De cabeça baixa, vencido pela
vida, voltei. Acicatava-me o desejo de a ver.
Cheguei em ronceiro e embalador
comboio do tempo de nossos avós, que serpenteava revolto rio. Rio que,
furiosamente, corria esmagado por alterosas e agressivas ravinas.
Espremido aqui, espraiando
acolá, rugindo, refervendo enraivecido, entre temíveis e pesados pedregulhos,
as águas prosseguiam sempre o tenebroso caminho, em busca de repouso … na mansa
corrente de grande rio.
Rodopiando, em medonhos
redemoinhos, enrolando-se e envolvendo agrestes penedias - descarnadas pelo Sol,
e despidas de líquenes e ervas rasteiras, - emprestava fantasmagórico especto à
natureza inóspita.
Beleza deslumbrante, que dilatava
a vista e enchia a alma de tristeza e medo.
Hospedei-me em modesta pensão,
na vizinhança da linha férrea.
Desemalei, vagarosamente, a
escassa roupa. Dependurei o fato domingueiro, no roupeiro, e, entusiasmado,
abalei em busca da garotinha da minha infância.
Foi um deslumbramento! …
Transfigurara-se em esbelta e garbosa adolescente. Moça guapa, gaiata, de
alegria contagiante.
Recebeu-me com simpatia e
amizade, como se os anos não tivessem passado.
Continuava formosa, e de
simplicidade encantadora...
Notei, ao despedir-me, que sem
desejar, crescera, no coração, estranho sentimento, que vivificava e abrasava a
alma – o desejo de a ter sempre diante dos olhos…
Não era atracão carnal, nem
paixão arrebatadora, que se torna obsessiva, mas precisão de – escutar sempre
sua voz, sentir sempre seu hálito quente, de a ter sempre perto de mim…
Eufórico, inebriado por
pensamentos fantasiosos, parti.
Sem refletir, logo assentei
escrever-lhe.
Faltou-me, todavia, o afoito, a
coragem de transmitir-lhe o entusiasmo em que andava enlevado.
Era missiva simples, de veladas
e tímidas palavras de ternura, que alma sensível ou sagacidade de mulher
adulta, entenderiam, mas não romanesca colegial, que, como Bela Adormecida,
ainda esperava príncipe encantado…
A resposta brincalhona, escrita
em letra redondinha, elegante, facilmente mostrava nada haver, além de amizade.
Carteamo-nos…até
que – para meu desespero, – cessou a correspondência.
Por essa ocasião, estando em
Paris, em Montmartre, apreciando aguarelas de jovem pintor, descobri mocinha,
que despertou-me sentimentos, que desconhecia… Não resisti….
***
Agora, velho, doente,
pressentindo avizinhar-se a velha Parca, que corta a frágil linha da vida,
regressei ao antigo burgo serrano, na ânsia de reviver os dias felizes que
passaram, mas que persistem serem presentes…
Sem custo, localizei a casa
onde a conheci. Por gentileza e respeito aos raros cabelos brancos, que ainda
me restam, fui convidado a pernoitar no interior.
O dono da casa, velho
conhecido, irmão da menininha, por cortesia, ofereceu-me hospedagem,
declarando, solenemente, com duas fortes palmadas nas costas, não aceitar
recusa.
Esta manhã de sábado, acordei
estremunhado… Era antemanhã. Pelas estreitas frestas das lâminas da persiana,
trespassava doce e vaga luminosidade doirada.
Enfiei, apressadamente, os
chinelos e de pijama de algodão estampado. Subi mansamente a sombria escada de
caracol. Os degraus rangeram levemente, apesar dos meus cuidados.
Encaminhei-me, então, para o
quarto que antigas reminiscências diziam-me ter sido pertença da “minha”
pequerruchinha.
Pé ante pé, penetrei. Como
criança medrosa, temia que descobrissem a minha curiosidade… o meu segredo…o
meu desejo…
Apurei as orelhas.
Certifiquei-me que não era observado. Circunvaguei vagarosamente a vista.
Silencio pesado. Em passinhos de lã, entrei. O quarto estava mergulhado em
sombra profunda…
Diante de mim, três estreitas
camas de ferro, esmaltadas a branco, que rebrilhavam debilmente na pálida
luminosidade da manhã, e três mesinhas de cabeceira. Em cada uma, sóbrio porta
- retrato, de estanho.
Abeirei-me do leito, que ficava
à direita, e sentei-me sobre a branca colcha de pelúcia. Pela agitada mente,
borboletearam, em borbulhão, frases e poéticos quadros dum passado longínquo:
Era uma tarde calma de Verão, (Como é doce recordar!...) Andavam os missionários pela cidade.
Perpassei por uma igreja. A porta estava aberta. Entrei. Perto do altar-mor,
acompanhada, em atitude de oração, permanecia recolhida a adolescente dos meus sonhos,
Fiquei embebecido na sua imagem. Olhei-a de soslaio e sorri. Ela sorriu, também.
A timidez impediu a aproximação….
A Primavera chegara doirada de sol. Uma brisa fresca soprava da serra,
toda toucada de neve…Ela trazia nos lábios rubros, um encantador sorriso…
Descia a avenida. O sol já se recolhera…quando…
Estes e outros doces episódios
insignificantes, há muito esquecidos, saltaram-me da memória, enchendo-me a
alma de infinita saudade, de um mundo que já não é.
Um gesto, uma expressão, um
aperto de mão, um abraço, um sorriso significativo, que se perderam no tempo, ressurgiram,
nesse momento, como por encanto… no meu espírito. E eu que os julgava, para
sempre esquecidos…
A vizinhança da morte faz
reviver o passado: a infância, a adolescência, a ternura, o carinho, o amor… a
vida…
Então, com estes olhos que Deus
me deu, vi: Vi, de pé, sobre a cama, de braços abertos, mãos estendidas,
garotinha de tez morena, cor das areias do mar, atirando-me meigos e doces
sorrisos.
Tinha vaporoso vestidinho
curto, de cor clara; camisolinha azul celeste e nos pezinhos rechonchudos,
curtos soquetes brancos.
Com esforço, alargava as
mãozinhas atrigueiradas, no intento de abraçar-me. Estendi as minhas, para a
receber….mas, a encantadora imagem esfumou-se, diluída em fina névoa perfumada,
deixando delicioso aroma a rosas frescas.
Enquanto desaparecia, ouvi vozinha
enternecedora:
- Vem! …Por que demoraste?! …
Estonteado, confuso, ergui-me.
Então, junto à parede branca, emergindo dela, surdiu silhueta difusa, que lentamente,
ganhou nítidos contornos.
Era adolescente de pouco mais
de dezoito anos. Tinha a boca cheia de risos irónicos e os olhos dilatados de
orgulho e gozo…:e ria-se… ria-se… sem cessar…
Ria-se de
quê?! De Quem?! De mim?! …
A medo perguntei, mas a voz
embargou-se. Então escutei leve eco, que vinha do passado:
-Tolo! Pensavas que gostava de
ti! …Só queria divertir-me! …Viver a vida! …Sentir-me amada! ….
Amargosas e abundantes lágrimas
de profunda tristeza, correram-me pelas pálidas faces.
Como nascessem dentro do peito,
ouvi, em desespero, novamente a voz jocosa do passado:
- Eras um pelintra! Pensavas
que uma Noronha podia viver…Onde encontrarias tu, João-ninguém, dinheiro para:
Casa confortável…Luxo…Férias no estrangeiro… Criadas para me servirem?…Querias
transformar-me em Gata Borralheira! … Bobalhão! …
Não me contive. Alucinado,
soluçando convulsivamente, pronunciei num suave sussurro - receoso que me escutassem,
- envolto num choro abafado:
- Mas amava-te! ….Loucamente….Como
nunca havia amado!...
- Amor… – respondeu a voz sarcástica
– é dar conforto. Amar, é ser respeitada. Invejada pelas outras mulheres….
Amar, é conviver com antigas condiscípulas, de cabeça levantada…. Não se
envergonhar de não ter vestido apropriado…. Amor, é possuir carro topo de gama!
…
Senti pejo de mim mesmo.
Tremenda vontade de fugir. Vergonha dos meus sentimentos. E mornas lágrimas de
dor encharcaram-me os olhos, raiados de sangue.
Precipitei-me, vexado, lívido,
contristado, para a porta, levando no espírito: frases, palavras e episódios, cheios
de ternura, de um passado que passou.
Enquanto fugia, coberto de
vergonha, suave e adocicado murmúrio de criança, ciciou-me muito baixinho, à
puridade:
- Não chores! …Não sabe o que
diz! … Dia virá – talvez já cá não estejas… – que há-de chorar lágrimas de
saudade…
Volvi-me para ver quem assim me
consolava. Apenas vi: três camas de ferro cobertas de brancas colchas….e
profundo silêncio.
Mas, não tenho duvida – a voz, era da menininha, de vestido curto, que
estava de pé, sobre a cama de ferro coberta com manta de pelúcia.
Só ela compreendera a minha
saudade…Os meus sentimentos…As minhas lágrimas….Só ela!…
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