Por Dias Campos (São Paulo, SP)
De todos os incidentes
internacionais de que tive notícia nesses meus longos anos dedicados ao serviço
diplomático, nenhum deles se comparou ao que a imprensa madrilena resolveu
noticiar como “A revolta dos touros”.
Foi
em 1935, um ano depois da entrada em funcionamento de Las Ventas, a maior Praça de Touros da Espanha.
Os
espanhóis acorriam como formigas atraídas pelo mel. As touradas
popularizavam-se cada vez mais, cresciam em importância e em público, e
elevavam os toureiros ao patamar de verdadeiros heróis.
É
claro que, de vez em quando, um ou outro desses heróis talvez preferisse ser
lembrado como um covarde vivo... Mas como esse infortúnio foi sempre exceção,
nenhuma morte jamais inibiu que outros continuassem a buscar a glória nos
estimulantes “Olés!”, no tremular dos lenços brancos, nas rosas deitadas aos
seus pés, e, se tudo saísse perfeito, no prêmio máximo de levar consigo as
orelhas e o rabo do touro decepados na hora.
Como embaixador, fui naturalmente
convidado para a tourada inaugural. E como não pudesse fazer desfeita,
confirmei minha presença e para lá me dirigi.
Acabei
sentando bem ao lado do embaixador mexicano. E se bem que ele não se cansasse
de parabenizar o governo espanhol pela imponência daquela Praça, não deixou de
passar adiante, mesmo que a baixa voz, que um dia seu país construiria uma
Praça de Touros ainda maior.
Não
que já não soubesse como se desenrola uma tourada... Mesmo assim, presenciar um
espetáculo desses não foi nem um pouco agradável. A cultura de um povo é sempre
respeitável. Mas, como pensa a maioria dos brasileiros, o que vi poderia ser
classificado como uma ode à carnificina.
Não
vou negar que no último tercio da
tourada, onde o toureiro pratica as evoluções com suas capas vermelhas (passes
com a muleta), todos ficamos
empolgados. Aí se aferem a coragem, a destreza, o bailado.
Mas
quando, no primeiro tercio, entraram
os picadores, cuja função é atiçar a raiva do touro e minar as suas forças,
espetando em seu dorso a ponta das lanças em forma de T, daí senti muita dó, e
um tanto de náusea. Aliás, o enjoo só não se intensificou porque foi amenizado
pela revolta que em mim crescia. Afinal, enquanto os picadores ferem sem
piedade o animal, ficam a salvo em cima dos seus cavalos, que sequer sofrem as
chifradas da pobre vítima, pois que envolvidos por lonas grossas que os
protegem.
A
ânsia tornou a crescer, todavia, quando, no segundo tercio, os banderilleros
passaram a agir. A sua performance, sem dúvida mais arriscada que a dos
picadores, consiste em encarar o touro de frente, ficar na ponta dos pés,
levantar um par de banderillas
coloridas sobre as próprias cabeças, apontando os seus espetos para o que ainda
resta do lombo, e, como se fora um louva-a-deus, precipitá-las sobre o alvo,
cravando-as para deleite dos espectadores e saindo ilesos do revide dos
chifres.
O
touro, já de língua de fora e com o sangue a escorrer em profusão, nada mais
pode fazer senão tentar atacar quem ainda vê caminhando na arena. Reação
alucinada de quem talvez pressinta a morte.
Daí
retorna o toureiro, que evoluciona mais um pouco para dar o golpe final.
Deitando
a capa ao chão, pega a sua espada, fica diante daquele que um dia foi
considerado campeão, como a mostrar grande coragem, aponta a lâmina para o seu
dorso, e, com um golpe certeiro, crava-a por inteiro até atingir a aorta.
E
enquanto o matador passa tranquilo por sua vítima, aguardando os hurras, o
touro cospe sangue, convulsiona, e tomba já sem vida.
Bem
diferente foi a minha reação se comparada à euforia do meu colega mexicano, bem
como a da quase unanimidade dos espectadores.
Pois
foi aproveitando dessa extrema alegria que me levantei sem alarde e saí de
fininho.
Devo
confessar, contudo, que se fiquei enjoado e entristecido pelo resto daquela
tarde, continuo carnívoro e um bom garfo. Apenas que, como sabia que o destino
daqueles touros era o açougue, tive um pouco mais de respeito às suas memórias
antes de devorar um filé à Chateaubriand no almoço do dia seguinte.
Nos meses subsequentes, recebi
convites para assistir a outras touradas; e sempre na Tribuna de Honra. Mas
deles declinei com a diplomacia de praxe.
Tudo teria ficado por isso mesmo,
não fosse uma carta que recebi do Brasil...
Meu
irmão, que já não via há um bom par de anos e por quem nutro grande estima,
escreveu-me dizendo de sua saudade. E como minha sobrinha, Ana, completara nove
anos, gostaria de presenteá-la, e à sua esposa, com uma viagem para a Europa,
começando pelo país onde o tio Olegário estava acreditado. Terminava
perguntando se poderiam ficar hospedados na residência do embaixador.
A carta apertou este velho
coração... Afinal, desde que nossos pais se foram, como não tive a graça de
casar e constituir família, meu irmão, minha cunhada e a pequena Ana eram o que
de mais feliz me sobrava.
Nem pestanejei. Escrevi que os
receberia com toda a alegria do mundo e que não se preocupassem com a
hospedagem, pois a residência do embaixador estaria à sua disposição. E
terminava dizendo que viessem o mais rápido possível e que ficassem por pelo
menos duas semanas, tempo suficiente para que pudesse mostrar as principais
belezas da terra de Cervantes. E despachei pelo malote oficial.
Quando o navio aportou, fui eu quem
primeiro os vi. E esquecendo toda e qualquer reserva a que um embaixador sempre
estará sujeito, acenei como fazem os pais à vista do filho que retorna da
guerra, tamanha a emoção que de mim se apossava.
Não sei a quem mais abracei, se ao
meu irmão ou cunhada. Só sei que saí com minha sobrinha no colo, cobrindo-a de
beijos e elogios, enchendo-a de perguntas e revelando que muitos presentes a
aguardavam na embaixada.
Depois que meus parentes foram
devidamente instalados, de abertos os presentes a Ana – confesso que acertei na
escolha, pois seus olhinhos brilhavam a cada embrulho desfeito –, e de trocadas
as lembranças entre os adultos, passamos ao jantar e aos mais diversos
assuntos. Tinha tanto que perguntar, e que contar!... As saudades precisavam
ser satisfeitas, não importando se a entrada ou o prato principal esfriassem.
A pouco e pouco nossos corações
serenaram. Foi quando ouvi de Ângelo um pedido que, se era natural a um
turista, para mim tornava-se no mínimo espinhoso. Meu irmão queria levar a
filha para assistir a uma tourada.
Minhas sobrancelhas levantaram-se.
Afinal, como imaginar minha sobrinha assistindo àquela atrocidade? E fiquei sem
saber o que dizer.
Como percebessem o meu retraimento,
meu irmão e cunhada anteciparam-se. Aquele, dizendo que não via nada de mal,
pois, ao que sabia, os espanhóis também levavam os filhos às touradas, meninos
ou meninas, e ninguém saía traumatizado. E Patrícia, pondo-se veementemente
contra, pois uma garotinha de nove anos não poderia presenciar tamanha
selvajaria, o que a deixaria, sim, traumatizada para o resto da vida.
E como apreendesse, pela divergência
nos semblantes, que os pais já tinham se debruçado sobre essa questão ainda no
Brasil, alternativa não tive senão a de me esquivar desse impasse com um
diplomático “Vamos passar ao fumoir?...”
No dia seguinte, iniciamos nosso
passeio pelas alamedas e recantos da capital. E posso me orgulhar de ter sido
um cicerone exemplar. Pudera! Além do roteiro não ter sido preparado por mim,
e, sim, por minha experiente e prestativa assessoria, minhas credenciais
franqueavam lugares antes vedados aos madrilenos, o que deixava eletrizados os
meus parentes.
É verdade que Las Ventas não foram esquecidas. E como nesse dia não houvesse
touradas, não achei mal mostrar a Plaza
deserta à minha família, na esperança de que meu irmão se satisfizesse em sua
grandiosidade e abandonasse a ideia de levar Ana ao mortífero espetáculo.
Minhas credenciais, como sempre,
foram suficientes a que entrássemos. E assim que descortinamos, lá de cima, a
“pequenina” arena, lá embaixo, meus parentes ficaram impressionados!
Até minha cunhada teve que ceder
ante a sua imponência, não deixando de comentar, à voz maravilhada, o tamanho
da balbúrdia que deveria ser se todos os lugares estivessem ocupados.
E quando respondi, pelo que me
lembrava das conversas que travara, que a capacidade do edifício é para mais de
vinte mil espectadores, Patrícia franziu a testa.
Não deixei de reparar que meu irmão,
que segurava Ana no colo, procurava passar à filha como deveria ser empolgante
estar no meio de milhares de pessoas arrepiando-se com o touro enfurecido,
vibrando com a coragem do toureiro e gritando “Olé!” a uma só voz.
Por
óbvio que a pequenina não alcançava tudo o que o pai tentava retratar. No
entanto, ela era toda atenção, e empolgação, reações naturais a uma filha ao
ouvir o seu primeiro herói.
Patrícia,
por sua vez, aproximou-se sorrindo de ambos e, com aquele jeitinho materno que
nunca falhava, retirou sem dificuldades a filha dos braços do pai. Em seguida,
passou aos contra-argumentos, buscando desfazer qualquer encanto que aquelas
cativantes palavras pudessem ter produzido.
Como
antevisse um novo impasse, encontrei na brisa que incomodava e nas nuvens que
assomavam a saída oportuna. E sugeri suspendêssemos o passeio e retornássemos
para a embaixada.
No
entanto, como fazia muito tempo que não viajavam, e como estavam encantados com
a capital, meu irmão e cunhada não queriam perder um só segundo. Daí que ambos
desdenharam da ameaça de chuva e insistiram para que continuássemos. Se a chuva
sobreviesse, que nos metêssemos em algum Café e a esperássemos passar,
ocupando-nos com suas delícias.
Não
me opus, e prosseguimos.
Como
aos meus parentes tudo era novidade, e encantamento, nem se deram conta de que
a brisa ficava cada vez mais fria. E se desprezaram essa advertência, nem por
isso atrasaram a anunciada. E a chuva nos pegou em cheio.
E
como ninguém pensara em guarda-chuvas, a alegria por encontrarmos um Café
fez-se menos pelo que consumiríamos do que pelo aconchego de um abrigo.
É
verdade que os cafés ajudaram a que nos aquecêssemos. E, de igual forma, que os
doces e a conversação contribuíram para que o tempo passasse sem tédio.
No
entanto, tínhamos nos molhado muito, e nossas roupas não secavam.
E
se bem que ficássemos apreensivos quanto à saúde de Ana, dela só ouvimos alguns
espirros, e nada mais.
Quanto
a Patrícia, porém...
É
que minha cunhada já chegara do Brasil com a garganta arranhando. Daí que se a
manhã seguinte amanhecia ensolarada, ela seria a única que não a aproveitaria,
preferindo sacrificar um dia de passeio, prevenindo-se de uma gripe, a estragar
toda a viagem, internando-se em um hospital.
Mas
como estivesse bem acomodada na embaixada, sob os cuidados da governanta e do
nosso médico particular, Patrícia não quis que Ana e o marido se privassem dos
passeios. Que saíssem e depois contassem cada detalhe.
E
tanto insistiu, que aceitaram.
Assim,
lá fomos nós três pelas ruas de Madri; desta vez, porém, munidos de
guarda-chuvas.
Apreciamos
fontes e monumentos, entramos em mais uma das muitas igrejas e almoçamos no
icônico Sobrino de Botín. – Ângelo
prometeu voltar com a esposa tão logo ela se recuperasse.
Mas
como insistisse para que fôssemos à minha confeitaria predileta, que ficava a
uma boa distância de onde estávamos, tive a ideia de alugar uma charrete, o que
divertiria ainda mais minha sobrinha.
Só
que a Praça de Touros ficava no
trajeto...
Quando
a viu de longe, os olhos do meu irmão brilharam. E como ele soubesse, porque já
se informara na embaixada, que as touradas aconteciam neste exato momento, não
pensou duas vezes e sugeriu que fôssemos assistir a pelo menos uma, antes de
fecharmos o dia com chave de ouro, na confeitaria.
Fiquei
sem palavras, pois sabia que Patrícia não gostaria que sua filha entrasse.
Minha
indecisão, contudo, não perduraria. É que Ana também pedia para que
assistíssemos à tourada; e com tal graciosidade que dobraria até o mais austero
dos puritanos. E como Ângelo garantiu que assumiria toda a responsabilidade...
Dava
para ouvir os “Olés!” já de fora, o que evidenciava a habilidade do toureiro e
uma Plaza lotada.
E,
com efeito, parecia que Madri inteira elegera o domingo para se comprimir. Não
fosse minha credencial, e certamente não passaríamos do portão de entrada.
Rumamos
para a área reservada às autoridades, talvez o único lugar em que ainda
sobrasse espaço.
Realmente,
só havia mais dois assentos disponíveis.
Meu
irmão pegou a pequenina no colo para que ela pudesse ver alguma coisa. Sua
alegria era visível, não só porque atiçada pela euforia da multidão, mas,
também, pela grande expectativa que Ângelo ajudara a construir.
O
toureiro, moço ainda desconhecido, exibia um talento promissor. Sua postura era
garbosa, e a destreza com que manuseava a capa fazia do touro marionete e
levava o público ao delírio.
Ana
perguntou ao pai se o touro estava suando muito.
Ângelo
não entendeu a pergunta.
A
menina insistiu, referindo-se às costas do animal. – ela confundia suor com o
sangue que escorria e se espalhava pelo lombo, depois da intervenção dos
picadores, e que se evidenciava sob a ação dos raios solares.
Meu irmão, então, buscando uma justificativa
que a contentasse, respondeu que como o touro ia e vinha com muita rapidez,
naturalmente suava muito nas costas.
Ocorre
que o tercio de matar caminhava para
o ápice...
E
como a visão a todos aprisionava, ninguém teve a ideia de colocar Ana no chão
para que não a presenciasse.
O
toureiro perfilou-se defronte ao touro, apontou a espada, e arremeteu com
precisão. E saiu para os aplausos...
Ana acompanhou toda a tragédia,
incluindo o consequente cuspir do sangue, o rápido estrebuchar, e o tombar
fatal.
E ao mesmo tempo em que Las Ventas iam ao delírio, Ana abria o
berreiro; e não porque tomasse um susto com a troada que explodia, mas, sim,
porque sua pureza se chocara com a brutal realidade.
Ângelo tentou em vão afagar a filha,
dizendo, entre outras bobagens, “Não foi nada, não foi nada...” e “Calma, já
vai passar...”
Mas
ela continuava a soluçar.
Uma
das autoridades que estavam ao nosso lado, porque já tivesse extravasado o seu
júbilo, percebeu o choro compulsivo e se aproximou preocupada.
Não
sei se isso foi decisivo, mas o fato é que ela foi se acalmando, se
acalmando... e parou de chorar.
E
quando todos já sorríamos, minha sobrinha soltou esta frase, dita na mais pura
ingenuidade:
-
“Vou pedir pro menino Jesus pra nunca mais o touro morrer.”
Mesmo
falando em português, o espanhol compreendeu a frase. E nós três nos
compadecemos dela.
O
melhor a fazer, portanto, seria irmos embora. E partimos na direção da minha
confeitaria preferida.
Lá,
a vermelhidão nos seus olhinhos sumiria e daria lugar a um cativante sorriso,
pois Ângelo prometera à filha tudo o que ela quisesse, mas com a condição de
não contar à mãe o fato de termos ido às touradas.
E
não é que a menina aceitou!...
Ana
cumpriu o prometido, o que nos deixou bem junto a Patrícia.
No
dia seguinte, como já estivesse bem melhor do mal que lhe acometera, minha
cunhada não se fez de rogada e foi logo perguntando aonde iríamos.
Como
já verificara o itinerário traçado por minha equipe, não titubeei e recomendei
o Parque del Retiro. Assim, nós
passearíamos, Ana brincaria, e depois almoçaríamos ali perto, em um pequeno
restaurante que, segundo as mesmas fontes, preparava a melhor paella da cidade.
Quando
caminhávamos às margens do Estanque
Grande, o grande lago, demos com um banco convidativo, pois era sombreado e
o sol já incomodava.
Ana
preferiu correr atrás das pombas, mas com a promessa de não ir muito longe; se
bem que Patrícia não lhe desgrudasse os olhos.
Mas
quando nossa conversa deu uma pausa, percebemos uma discussão entre dois
senhores, sentados em banco próximo.
Pelo
que ouvia, comentavam uma notícia de primeira página. Um, revoltava-se, pois
não acreditava que o principal jornal da Espanha tivesse a coragem de publicar
tamanha asneira; o outro, dele discordava, pois ouvira de fontes confiáveis que
o fato tinha realmente acontecido. E gesticulavam, e defendiam os seus pontos
de vista. Até que se levantaram e foram embora.
Como
o meio-dia se aproximava, Ana já reclamava de fome. E fomos à nossa maravilhosa
paella.
Quando
chegamos ao restaurante, que estava cheio, mas não lotado, percebemos um
alvoroço. É que aquela notícia já se espalhara por toda a cidade e não havia um
só homem ou mulher que não a estivesse comentando ou procurando mais notícias
nos periódicos.
O
maître nos conduziu a uma mesa e não
perdeu a oportunidade de perguntar se já sabíamos do acontecido.
E
como disséssemos que não, ele, muito solícito, tratou de providenciar um
exemplar para que nos inteirássemos.
Porque
estivéssemos bastante curiosos, resolvi traduzir rapidamente a chamada para os
meus parentes. E li em voz alta estas letras garrafais:
“Criança
brasileira suplica a Jesus. E os touros se revoltam!”
Não preciso dizer que assim que terminei, e me
dei conta do que acabara de ler, meus olhos se arregalaram e minha face ficou
vermelha.
E
também é desnecessário acrescentar que assim que levantei a cabeça, procurando
meu irmão, seus olhos e face estavam em pior situação.
Minha
cunhada percebeu a nossa reação – se bem que até um cego perceberia... – e,
desconfiada, insistiu para que eu lesse toda a reportagem em voz alta.
Ainda
bem que Ana, pequenina que era, não deu importância à notícia. Até porque, como
estivesse faminta, toda a sua atenção convergia para o jamón cerrado que pedimos como entrada.
Segundo
a notícia, que resumirei com minhas palavras, depois da tourada a que tínhamos
assistido, estavam programadas outras duas. Ocorre que, assim que o portão foi
aberto, ao invés de surgir um monstro enfurecido, como fazem os campeões, Las Ventas viu entrar, a trote manso, um
bicho meio apagado, nada atemorizante, e que parou no meio da arena, deitou-se,
e lá ficou. E por mais que os peones,
os assistentes do toureiro, tentassem açular o animal com suas capas, o touro
permanecia impassível, como se recusasse a investir contra quem quer que fosse.
Mesmo quando os picadores resolveram intervir para enfurecê-lo, o máximo que
ele fazia era mugir de dor, mas não se levantava.
E
enquanto o matador testemunhava, estarrecido, a inacreditável cena, as vaias
começaram a pipocar e logo tomaram conta de toda a Plaza.
O
jeito foi laçar o animal e puxá-lo para fora da arena com o auxílio das mulas.
O
mesmo fato aconteceu ao touro seguinte, o que deixou a arquibancada furiosa, os
assistentes, sem saberem o que fazer, e os toureiros, envergonhados e de unhas
roídas.
Mas
ao mesmo tempo em que o público começava a abandonar Las Ventas, um boato se espalhava mais rápido do que rastilho
aceso: Alguém teria ouvido da boca de uma menininha brasileira, que chorava
muito, um pedido para que o menino Jesus interviesse e nunca mais permitisse
que os touros morressem.
E
a reportagem terminava dizendo que, pelo visto, a súplica daquela “santinha”
tinha sido atendida.
O
silêncio imperou na mesa por alguns segundos. E só foi quebrado porque Ana, que
pensávamos não tivesse ouvido nada, soltou esta pérola, enquanto mastigava uma
fatia de presunto:
-
O menino Jesus meu ouviu. – E deu uma risadinha.
Ainda
bem que minha cunhada sempre primou pela compostura. Mas que ela disse ao
marido que depois teriam uma bela conversa, ah! isso ela disse!...
Tudo
teria acabado neste particular, que tiveram na mesma noite, não fosse o fato de
a embaixada ter sido cercada na manhã seguinte...
Sim,
centenas de espanhóis cercaram a nossa embaixada, e gritavam para que a
“santinha” desfizesse o pedido ao menino Jesus!
Ao
que parecia, aquele alto funcionário espanhol, que conosco dividira a Tribuna
de Honra, não só deu causa ao boato, estupefato que ficou assim que fomos
embora, como, também, deduzindo onde Ana estava hospedada, provavelmente por
ter me reconhecido, não se aguentou e forneceu aos jornais a maior das
manchetes.
Ficamos
sitiados até que a polícia chegasse e fizesse debandar os cidadãos.
Mas
isso estava longe de terminar. Como os touros de Las Ventas permaneciam revoltados, inúmeros jornalistas acamparam
defronte à embaixada, vários romeiros já tinham cruzado os limites da cidade, a
Igreja ameaçou excomungar minha sobrinha, e o Alcaide, em pessoa, requereu a mim uma audiência, e com urgência!
Mas
como desgraça pouca é bobagem, é óbvio que essas notícias cruzaram o Atlântico
e foram todas bater às portas do gabinete de Sua Excelência, o Presidente da
República.
Pois
não é que recebi um telefonema do próprio Getúlio Vargas, cobrando-me
explicações!
No
pé em que estávamos, a presença dos meus parentes, que só deveria trazer
alegrias, já se transformara em um terrível pesadelo, um verdadeiro incidente
internacional, com cobranças de todos os lados e, o que é pior, com a
possibilidade de sermos todos declarados personae
non gratae!
E
como minha carreira estava por um fio, chutei o meu positivismo, amordacei o
meu agnosticismo, e, engolindo o meu orgulho, também fui suplicar – às
escondidas, que fique bem claro – à minha sobrinha para que pedisse ao menino
Jesus para que tudo voltasse ao normal.
E
não é que a meninota revelou-se intransigente, e, desta vez, insubornável!
Mas
se até então não acreditava em milagres, fiz questão de agradecer aos céus pela
notícia que li semanas depois, e que foi estampada nos principais jornais do
país. – Depois de minuciosas análises, uma equipe de renomados veterinários
descobriu certa substância química que jamais fizera parte da dieta regular dos
touros, sendo essa a verdadeira causa da sua apatia.
Daí
que os animais passaram a ser alimentados com o melhor dos fenos, e sob a
fiscalização governamental. – A par disso, um inquérito policial foi instaurado
para apurar se aquela adulteração foi ou não criminosa.
Passado
o período necessário à recuperação, e os touros voltaram a reagir como
verdadeiros campeões.
Quando a poeira abaixou, nem se
pensou em almoço ou jantar de despedidas. Meus parentes arrumaram as malas,
saíram discretamente da embaixada, e partiram direto para o Brasil. – Aposto
que nunca mais pisarão na Espanha.
Os
jornais logo se esqueceram da “santinha” e da “Revolta dos touros”; até porque,
o generalíssimo Franco ocuparia as manchetes por um bom tempo ainda.
Eu
me aposentei três anos depois, e retornei ao Brasil.
E basta que nós quatro nos reunamos
para que aquele episódio volte à tona. E nos desmanchamos de tanto rir.
No fundo, eu até gostaria que minha
sobrinha tivesse mesmo o privilégio de pedir a Jesus e ser por Ele
imediatamente atendida. Não digo isso só pelos touros. É que, segundo me
confidenciaram amigos do Itamaraty, neste início de 1939, os ânimos lá na Europa
andam um tanto beligerantes...
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