Por Valéria A Gurgel (Nova Lima, MG)
Numa
cidadezinha pacata, no interior das Minas Gerais, tão logo o dia começava a
clarear, o pároco da pequena igrejinha local ligava seu ruidoso megafone
instalado no alto da torre. As paredes que sustentavam aquele aparato antigo,
eram de pedras encardidas de mofo e estavam bastante obstruídas pelo tempo. As
paredes da capelinha pintadas de amarelo fosco e portas de madeira tosca, azul
grená.
Padre
Juvenil seguia mais de meia hora, todas as manhãs regulando o volume do
megafone para então, anunciar a lista dos falecimentos da madrugada. E lá
naquele caderno amarelecido, estava escrito o nome do Sr. Eteovaldo, mais
conhecido como Zé Cuberta.
O
Zé ganhara esse apelido inusitado pela velha mania de sair caminhando pelas
ruelas geladas e escuras daquele, digamos, vilarejo, enrolado em um velho
cobertor, deixando somente os olhos e o nariz de fora, para se proteger do frio
estarrecedor dos períodos de inverno, ano pós ano por ali.
O
carismático padre, já bastante idoso e quase careca, com seu par de óculos de
fundo de garrafa, caído sobre o afilado nariz, punha para tocar uma musiquinha
fúnebre, conhecida como “O silêncio”, para provocar aquela nostálgica tristeza
local.
Depois
de deixar a música tocar por alguns minutos e comover a população, ele começava
a ler a relação dos nomes dos mortos.
-
Nota de falecimento e convite! A família do senhor, Eteovaldo Pereira da Silva,
mais conhecido como Zé Cuberta, informa aos parentes e amigos o seu falecimento
ocorrido ontem e convida para o seu sepultamento a realizar-se hoje às dez
horas no Cemitério local. O velório se realizará à rua Tocantins número 147,
bairro Morro Velho.
Voltamos
a informar o falecimento do senhor Eteovaldo…
Mas
ninguém ainda imaginava o que tinha acontecido por volta das cinco e meia da
madrugada, na casa do falecido e que depois do ocorrido, aquele lugar nunca
mais seria o mesmo!!!
Dona
Geni, acordou por volta das dez e trinta da noite, desesperada, ao sentir que o
seu marido estava gelado, intacto, de olhos abertos e bem arregalados por
sinal, rijo, espichado de barriga para cima, na cama, bem do seu lado!
Ela
não se conteve e se pôs a gritar! Tão logo a velha casa de esquina encheu-se de
gente! Todos vieram para acudir o homem! Mas fora em vão. Morrera dormindo,
aquele pobre cristão!
A
recente viúva, após confirmar a morte repentina do marido, pediu a um moleque,
filho do verdureiro, para correr até a casa paroquial para o Padre Juvenil ir
encomendar a alma do falecido, mas ele não o atendeu.
Naquela
época e ainda se tratando de uma cidadezinha muito pobre e sem recursos, era de
praxe os próprios vizinhos dar banho, secar, vestir e arrumar o defunto em casa
mesmo. Enquanto a família do enlutado ficava à espera do caixão, que sempre
demorava chegar, porque vinha de outra cidade a alguns quilômetros.
Sendo
assim, o velório transcorria com o morto deitado em uma cama de solteiro,
coberto por um lençol branco e arrastada para o centro da sala de visitas. Até
que amanhecesse e algum conhecido pudesse ir até a funerária da cidade mais
próxima, buscar a urna, o véu e uma coroa de flores, com uma modesta faixa
preta escrita assim: “Funenária Santa Maria, a sua morte é a nossa alegria.
Uuuppss!!! Nossa melancolia, quis dizer!
Não
havia evento mais divertido para os homens da região, pois conseguiam um
pretexto para sair de casa à noite e passar a madrugada bebendo o defunto e
falando pelos cotovelos.
Era
por volta das quatro e meia da madrugada, os parentes já dormiam recostados
pelos cantos da casa, três homens, encostados no parapeito de uma pequena
janela de madeira tosca, jogavam cartas e bebiam cachaça para espantar o frio
que apertava. Quando um pergunta bem cismado para o outro:
-
Você não viu? Parece que o Zé se mexeu!!! - Cê tá variando, cumpade Piriá! O Zé
tá morto e geladim, coitado! - Comentou o Compadre Juquinha. - Cê bebeu demais
e tá ficando doido, home?!
-
Bebi não, cumpade Manél! Eu juro que vi o defunto se mexê debaixo do lençor! -
Resmungou o homem, cabreiro, cuspindo um pedaço de fumo mascado.
Um
clima tenso se fez. Lá pelas cinco e meia da manhã, já quase com o dia
clareando, um gemido confundido com ronco fez com que os três homens se
entreolhassem e parassem de gritar truco, para ouvir. Mas não era nada! O
defunto continuava lá, estirado sobre a cama! E eles seguiram, jogando cartas e
bebendo cachaça para esquentar.
Inesperadamente,
aquela cama fez um barulho estranho! Parecia se ranger com o peso do corpo.
Parecia reclamar e avisar que alguém estava se mexendo...
O
Zé descobriu-se do lençol, de uma só vez, levantando-se e perguntando:
-
Ocêis tão me oiando por causa de quê? Onde está a minha cuberta?
Vão
me servir uma dose da marvada aí, ou nu vão? Tá um frio excomungado hoje! Tô
inté achando que morreu o capeta mais veio do inferno!
Os
três homens, sendo um deles perneta, saltaram pela minúscula e única janela
daquela sala ao mesmo tempo!
Foi
por muito pouco que aquele pobre homem era sepultado vivo! Depois do incidente
ocorrido, dizem que ele foi tido como morto e acordou mais duas vezes! Numa
delas, chegou a ter cortejo fúnebre, mas, o próprio defunto foi caminhando,
enrolado em sua coberta, até que todos perceberam que carregavam um caixão
vazio!
Nem
mais o Padre acreditava nos prenúncios de falecimento do Zé Cuberta e não mais
aceitou anunciar as suas supostas mortes em seu megafone.
Assim,
quando morreu enfim, de vez, o pobre cortês, ninguém das redondezas foi velá-lo!
Da
quarta vez, ele morreu mesmo, enfim! Mas Padre Juvenil, muito sem fé, se negou
a dar a encomendação da alma do falecido.
Até
hoje, ele não se levantou de sua tumba, nem se despertou para assustar ninguém.
Mas, ainda assim, há quem passe em frente o cemitério e diz ver o Zé Cuberta
sentado em cima do muro, puxando um trago em seu cigarrinho de palha, baforando
fumaça pelas ventas, enrolado em seu velho cobertor sujo de terra, dando
risadas, com seus dois únicos dentes cariados e pedindo com o velho gesto dos
dedos, uma dose da branquinha!
Site
Literário: www.valleriagurgel.com
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@valeriacristinagurgel
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